Não podemos nos afastar da possibilidade de construir outro mundo
Por Marcelo Silva, para a série da Coluna Cidade das Letras “Sobre a perplexidade da esquerda”
Na campanha presidencial de 2002, o então candidato Lula escreveu uma “Carta ao povo brasileiro”. Essa e outras ações durante a campanha contribuíram para tornar a imagem de Lula mais palatável às elites e parte da população. Em um momento da carta, ele diz que “o sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se”.
É notório que as estratégias utilizadas para vencer eleições no Brasil, não necessariamente, se preocupam em apresentar projetos elaborados de sociedade e de país, em muitos casos, aos eleitores não são apresentados sequer os programas de governo. O documentário “Arquitetos do Poder”, nos dá a dimensão dessas estratégias e artifícios.
Faço menção à carta de 2002 por entender ser um dilema atual das esquerdas construir uma relação cognitiva entre as suas bandeiras e as demandas da classe trabalhadora. A sensação é que o “atual modelo esgotou-se”.
Luciano Mendes, em texto nesta mesma coluna, discorreu sobre “a perplexidade das esquerdas”. Corroboro com ele quando diz que “elas ainda acreditam em demasia na racionalidade iluminista”. É como se, racionalmente, fosse inviável alguém defender um projeto que ameaça a sua própria existência enquanto sujeito, é como se a razão do que se apresenta enquanto “projeto” bastasse para garantir a ação política dos cidadãos em prol dos projetos progressistas.
O apego a essa visão definida por Luciano Mendes, por outro lado, a meu ver, impede que percebamos a complexidade da formação social dos sujeitos e tudo aquilo que os atravessam em suas subjetividades.
Como alcançar as pessoas?
São vários os exemplos de pessoas próximas, familiares, amigos da escola, colegas de trabalho, com diferentes formações e classes sociais, conhecidas nossas, externar comentários “absurdos”. Sempre me questiono quando ouço algo deste tipo: quem, qual ideia e onde essas pessoas estão se formando? Sim, as opiniões compõem um campo de formação.
Como podemos alcançar essas pessoas? Alguns dizem: “Elas falam isso porque não conhecem história!” E a nós, será que falta pedagogia para dialogar com essa população?
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Mas esse mesmo povo, que acreditou na “carta ao povo brasileiro”, que sentiu o esgotamento do modelo e que elegeu “a esquerda” (ou Lula) por 5 mandatos, de repente, tornou-se ignorante e elegeu outro sujeito abominável? O que mudou? O povo ou o modo como dialogamos e apresentamos as propostas?
Claro que, dentro dos mecanismos eleitorais brasileiros, temos as alianças, o papel das elites, as fake news, o uso dos algoritmos e redes sociais, toda uma novidade tecnológica e da comunicação que deixou o processo ainda mais complexo.
Se em 2002, representada na figura do PT, as esquerdas precisaram se adequar às regras do jogo, me parece que se perderam na intencionalidade de ganhar eleições e se afastaram daquilo que sempre as fundamentaram: a formação a partir da ideia de construção de outro mundo.
É preciso ganhar as eleições, pois aprendemos sobre a importância de ocupar certos espaços no executivo e legislativo, foi isso que garantiu muitas políticas públicas. Mas não podemos nos afastar da possibilidade de construir outro mundo, continuar sendo os propagadores de utopias. Já disseram que não existe movimento revolucionário sem teoria revolucionária. Atualmente, parafraseando Ailton Krenak, é preciso construir ideias para adiar o fim do mundo.
E essas ideias, como destacou Luciano Mendes em seu texto, perpassam pela coletividade. Arrisco a dizer, por uma “pedagogia da coletividade”. Em uma sociedade onde impera o individualismo exacerbado, a competitividade, a concepção de mundo de que o outro é meu concorrente, é necessário aprender, literalmente, outra cosmovisão de mundo.
Temos as experiências históricas das lutas dos trabalhadores, dos movimentos sociais, das associações de bairro, das cooperativas populares, das cozinhas solidárias, das experiências educativas formais e informais, dos povos originários, dos quilombos, dos coletivos de comunidades vulneráveis, etc.
Qualquer exemplo, em qualquer lugar do mundo, que busquemos para ilustrar o sentido proposto, teremos como característica tratar-se de um movimento coletivo. E onde existe movimento coletivo, existe pensamento coletivo. Este pensamento, ou cosmovisão, ou teoria, definam como quiser, perpassa por um diálogo, uma linguagem, uma narrativa, uma aprendizagem que precisa ser transmitida, ensinada, construída em conjunto por uma cognição inteligível.
Não estou aqui afirmando que não existem movimentos coletivos na atualidade. Ao contrário. O que estou refletindo é sobre a possibilidade de alcançarmos o cotidiano das pessoas, em termos de afetar o campo de pensamento, de construir reflexões que interfiram nas suas ações no mundo, que nos eduquem para outras possibilidades e sobre outras perspectivas.
O mundo do trabalho é dinâmico, mas é preciso disputar a formação dos sujeitos, entender, como diria o historiador E. P. Thompson, que as pessoas agem de acordo com suas condições e possibilidades.
Marcelo Silva é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus -BA) e coordenador da região nordeste do Portal do Bicentenário: 200 anos de escolas públicas no Brasil.
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Este é o terceiro artigo da série Sobre a Perplexidades das Esquerdas, organizada pela Coluna Cidade das Letras
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida