O choque entre o sonho e a realidade brasileira provoca reflexões profundas sobre identidade e perte
*Por Ariel Morelo e José Vitor Cruz
Tanto quanto os corpos, o desejo e a alegria sempre buscam um refúgio, mesmo nas situações mais extremas. Pode ser um país, mas, no caso que vamos relatar, foi um time de futebol o refúgio a partir do qual jovens imigrantes reencontraram, ou melhor, reconstruíram identidades, laços de solidariedade e uma fresta por onde enxergar ao menos uma réstia de esperança.
No centro de crises humanitárias, em meio a deslocamentos forçados e ao peso do racismo, o Pérolas Negras emerge como um símbolo de esperança para jovens refugiados e imigrantes no Brasil. Criado por meio dos esforços da OSC Viva Rio, o projeto transcende o esporte, oferecendo a jovens de países como Haiti e Venezuela a oportunidade de reconstruírem seus sonhos em solo brasileiro. O Pérolas Negras é uma resposta audaciosa a um mundo que insiste em fechar fronteiras e portas a quem busca acolhimento.
Este artigo surge a partir da visita técnica do Observatório das Desigualdades, da Fundação João Pinheiro, no âmbito de uma pesquisa sobre juventudes patrocinada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Em encontro com os coordenadores do Viva Rio, na sede localizada em um prédio histórico entre o metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro e as comunidades do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, os pesquisadores puderam explorar o impacto de um trabalho que alia esporte, cultura e inclusão social.
Rotas de migração e o papel das OSCs
A chegada de haitianos ao Brasil ganhou força após o terremoto de 2010, que agravou a já precária situação econômica e social do Haiti. Entre aquele ano e 2014, mais de 53 mil haitianos entraram em território brasileiro, muitos por meio de vistos humanitários criados exclusivamente para essa população.
A movimentação foi impulsionada por fatores como o crescimento econômico brasileiro na época, a preparação do país para sediar megaeventos esportivos e a imagem de oportunidades amplamente divulgada pela mídia.
A realidade enfrentada no Brasil, marcada por desafios como o racismo e a xenofobia, muitas vezes contrasta com as expectativas de acolhimento propagadas pelas redes migratórias.
O Viva Rio atua no Haiti desde 2004, integrando a Minustah a convite da ONU, com base em sua experiência em mediação de conflitos nas favelas do Rio de Janeiro. Desde então, a organização implementa projetos de desarmamento e inclusão social, com destaque para iniciativas que vão além da reintegração de ex-combatentes, envolvendo comunidades inteiras.
A Academia Pérolas Negras é um dos projetos mais emblemáticos, oferecendo treinamento esportivo, educação e infraestrutura de alto nível para jovens imigrantes e moradores das comunidades.
Brasil sonhado e Brasil real
O treinamento tem início em Bon Repos, na zona Norte de Porto Príncipe, onde jovens a partir de 16 anos são selecionados para dar continuidade à sua formação futebolística no Brasil.
Isabel Macedo, coordenadora do projeto Haiti Aqui nos relata que o impacto do Pérolas Negras transborda as fronteiras do Haiti. Com uma base em Paty do Alferes, no estado do Rio de Janeiro, o projeto acolhe jovens refugiados de diversas nacionalidades, como venezuelanos e sírios. Eles dividem o seu tempo entre o esporte e os estudos, ampliando suas oportunidades para inserção no mercado de trabalho.
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Por outro lado, o "Brasil sonhado" que chega ao Haiti, idealizado como terra do futebol, da alegria e da convivência harmoniosa, é um reflexo de imagens exóticas e estereotipadas. Ao desembarcarem aqui, os migrantes confrontam um "Brasil real", marcado por complexidade cultural, desigualdades sociais e racismo estrutural.
O choque entre o sonho e a realidade brasileira provoca reflexões profundas sobre identidade, pertencimento e resiliência. A experiência de viver no Brasil reafirma a identidade negra dos haitianos, destacando diferenças fundamentais entre suas histórias nacionais e os legados coloniais. Iniciativas como o Projeto Haiti da Viva Rio celebram a possibilidade de romper estigmas e promover a inclusão antirracista. Apenas assim, o "Brasil sonhado" poderá se aproximar, um dia, do Brasil que se constroi na realidade.
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento do projeto Impactos das Desigualdades Sociais sobre a Juventude Brasileira, que viabilizou a realização desta pesquisa e a elaboração do presente artigo.
Agradecemos também ao Michel Saraiva, coordenador pedagógico de diversos projetos no Rio de Janeiro, por sua valiosa orientação durante a visita técnica, à coordenadora do Projeto Hati Aqui, Isabel Macedo, e ao coordenador da Central Viva, Cléo Moraes, pelo apoio e contribuições que enriqueceram este trabalho.
Referências
[1] Machado, F. J. E. (2018). O caso Pérolas Negras: um olhar complexo sobre a relação entre futebol, jornalismo e fluxos migratórios contemporâneos.
[2] Staudt, T. (2023). Brasil “sonhado” e Brasil real: impressões e experiências de imigrantes haitianos. Revista Cadernos do Ceom, 36(58), 25-39.
O Observatório das Desigualdades
Parceria entre a Fundação João Pinheiro (FJP) e o Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), o Observatório das Desigualdades, criado em agosto de 2018, é um projeto de extensão do curso de Administração Pública da FJP que busca informar sobre as diferentes faces da desigualdade social, os mecanismos que as produzem e reproduzem e as formas de enfrentá-la, difundindo e tornando mais acessível o conhecimento sobre o tema.
Ariel Morelo
Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista de pesquisa no Observatório das Desigualdades através da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). É mãe, professora, militante e produtora cultural. Faz parte da atual gestão do Conselho Municipal de Juventudes (Comjuve) de Belo Horizonte.
José Vitor Cruz
Graduando em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro (EG-FJP) e bolsista de iniciação científica do Observatório das Desigualdades. Atua também como estudante voluntário de iniciação científica no grupo de Pesquisa Estado, Gênero e Diversidade (Egedi), sobretudo em pesquisas com temática LGBTQIAP+.
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Ana Carolina Vasconcelos