A escola não é um diminuto da sociedade, mas sim a própria materialidade social
A escola é uma maquete da realidade? Essa foi a pergunta realizada por um estudante de pedagogia, direcionada a mim, e a outro docente que divide comigo a responsabilidade por uma disciplina (interdisciplinar). A pergunta gerou um silêncio na sala de aula.
Eu parei, respirei e disse algo como: agora eu não tenho uma resposta. Olhei para meu colega e ele balançou a cabeça em sinal de negativo. Também não tinha de pronto uma resposta. A disciplina em que a situação ocorreu envolve estágio supervisionado e, naquele momento, desenvolvíamos uma reflexão do estágio em associação com a pesquisa e a realidade escolar brasileira.
Gosto muito quando os alunos formulam perguntas que não consigo responder de imediato. Aliás, gosto quando perguntam, dialogam, debatem, discordam; frustrante é quando não há envolvimento e todo processo formativo perece tornar-se um empecilho para a aquisição do diploma e outros elementos de ordem prática, sem a valorização da reflexão e do engajamento social necessário para com a educação.
Algumas perguntas, o professor atento, pode carregar por dias, semanas, meses, até anos. Surpreende-se pensando nelas enquanto dirigi, escova os dentes ou aprecia um vinho. Perguntas que, em certos momentos, pode-se chegar a uma determinada resposta, depois melhora, revisa, retoma. As perguntas movem a busca pelo conhecimento, pela compreensão da realidade. Nesse caso, após dois ou três meses, consigo dizer algo que possa valer à pena.
Entender a escola como uma maquete é reproduzir uma ideologia que desconsidera a organicidade do espaço
A concepção comum de maquete é a de uma representação diminuta da realidade. Uma casa, uma ponte, um avião, um feudo, uma cidade inteira, podem ser simulados como maquete. Essas elaborações, por vezes, extremamente detalhistas, têm algumas finalidades, como ensinar sobre funcionamentos e estruturas, preservação imagética e possibilidade comparativa, entre outras. Porém, as maquetes costumam ter um papel importante para o planejamento, ou seja, a maquete enquanto um protótipo. Levando-se em consideração que nosso diálogo em sala de aula ia além das características prediais, estava implícito que a consideração da escola enquanto maquete ganhava um estigma de modelo reduzido.
A ideia de que a escola pode ser uma maquete, ou seja, um cenário circunscrito e reprodutivo da realidade, denotando caráter preliminar, é problemática. É evidente que a escola, com suas intencionalidades, tem um sentido preparatório, mas não se limita a isso. Quantas vezes se diz nos espaços escolares que essa instituição prepara para a vida? Sendo que a experiência escolar é vivência. Quantas vezes se diz que uma determinada etapa constrói as bases para a etapa seguinte? Sendo que as bases já fazem parte de qualquer edificação posterior.
Também é comum um olhar para escola como objeto a ser passível de experimentações, intervenções, aplicações, sem se considerar realmente os sujeitos que ali habitam e as comunidades integrantes. Outra condição da escola enquanto maquete laboratorial.
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Henri Lefebvre, filósofo francês, que analisou atenciosamente a construção do espaço, envolvendo a tríade do concebido, do percebido e do vivido, e que tem inspirado inúmeras pesquisas e ações sociais e políticas críticas pelo mundo, contribui fundamentalmente para respondermos à pergunta. Em seu livro A produção do espaço, escreveu:
“Esse espaço assemelha-se analogicamente àquele da tradição filosófica (cartesiana). É desgraçadamente tanto o espaço da folha de papel branco, da prancheta de desenho, de planos, de cortes, de elevações, maquetes, projeções. Substituí-lo por um espaço verbal, semântico ou semiológico, agrava a insuficiência [debilidade]. Uma racionalidade estreita e dessecada omite o fundo e o fundamento do espaço, o corpo total, o cérebro, os gestos etc. (...) O que não corresponde senão muito bem ao urbanismo de maquete e de plano-massa, complemento do urbanismo dos esgotos e vias sanitárias, onde o olhar do criador se fixa a seu capricho e à sua vontade sobre “volumes”, (...) desconhece ao mesmo tempo a prática social dos “usuários’ e a ideologia que em si mesmo contém”.
Em resumo, entender a escola como uma maquete é reproduzir uma ideologia que desconsidera a organicidade do espaço, limitando-a há uma condição de subordinação ao instrumentalismo burocrático do planejamento e da gestão.
A escola, portanto, não é um diminuto da sociedade, mas sim a própria materialidade social em sua integralidade, que não pode ser fragmentada ou contraída, a não ser por aqueles que negam a centralidade e o movimento complexo de construção social constante, e assim, pouco ou nada entendem de educação, prejudicando a ampliação de suas potencialidades.
Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor Doutor do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor de História nas redes municipal de Poços de Caldas e estadual de Minas Gerais por quase duas décadas. É especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP). Tem atuado em órgãos e movimentos sociais em defesa da educação pública, democrática e de qualidade.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida