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Entre dificuldades e perplexidades da esquerda hoje

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Reprodução - Arquivo PT
Na defensiva, e atacada por ressentimentos, sobrou pouca força para a esquerda

Por Alexandre Fernandez Vaz

Não é surpreendente, nem um problema, que as esquerdas andem perplexas, coisa que já faz algum tempo que acontece. O mundo político, no Brasil e fora dele, mudou muito na última década e tampouco haviam sido sem movimento os dois decênios que a antecederam.

A perplexidade frente a fenômenos cuja força histórica é grande mostra inteligência e sensibilidade, e é certo que é impossível ficar alheio aos acontecimentos que temos presenciado. Não é fácil acompanhá-los, menos ainda levá-los, como expressões da experiência histórica que nos cabe viver, ao plano do conceito. Sem chegar lá, no entanto, ficamos à mercê da euforia e do desvario, cuja velocidade é a mesma da imprensa que pouco apura e muito fala (tem que correr para noticiar antes que seus adversários o façam) e das redes sociais, que pouco pensam, mas muito gritam (é preciso emitir uma opinião ou, pior ainda, enviar uma imagem, ou não se estará up-to-date com os acontecimentos).

Não mais que para localizar um pouco das vicissitudes do presente, vale a pena reconstruir, em linha muito gerais, alguns pontos que demarcam os vertiginosos tempos que nos precedem.

Os anos 1990 foram aqueles que sucederam o desabamento vertiginoso do socialismo realmente existente, cuja queda foi comparada por um insuspeito Eric Hobsbawm com a de um castelo de cartas. A tal solavanco se somou a liberação da internet dos fins militares originais, agora disponível para o comércio, o que sem demora a levaria para a formação de novas subjetividades adaptadas e adaptáveis a um novo padrão tecnológico e informacional.

Foi por aqueles tempos também que o Partido dos Trabalhadores (PT) se reorganizou nos termos da nova ordem mundial, renunciando à proposta revolucionária e admitindo que o socialismo que propugnava a partir de então reconheceria a propriedade privada como dimensão inalienável da democracia. À derrota de Lula em 1989, para a presidência da República, somaram-se as de 1994 e 1998, pleitos dominados pela máquina política e econômica do que temos chamado de Centrão, aquele bloco que se movimenta, segundo a feliz análise de Marcos Nobre, para que o imobilismo continue sendo a regra.

A década seguinte foi de relativa felicidade para a esquerda hegemônica no Brasil e agremiações similares em parte do mundo, situação que foi alcançada não sem um decisivo ajuste fiscal que fez o governo de Lula, a seu modo, responder às demandas do mercado mundial e do neoliberalismo plenamente instituído.

A inclusão de parcela significativa da população nos meandros da produção e, principalmente, do consumo, não foi obra do acaso, mas tampouco prescindiu da expressiva alta das commodities no mercado internacional, China à frente. O custo disso não foi baixo, incluindo o alto tributo ecológico, a exemplo do desastre de Mariana (MG), em boa medida fruto da superprodução de aço para exportação. De qualquer forma, a impressão que dava é que havia um novo consenso que ia do centro para o lado esquerdo, visível, por exemplo, na enorme dificuldade de José Serra se posicionar contra Dilma Rousseff nas eleições de 2010. Afinal, como convencer ao eleitorado que ele devia votar em um candidato de oposição que prometia fazer o mesmo que Lula, mas melhor do que sua adversária?

Quando o milênio se aproximava de completar seus primeiros 10 anos, uma mudança qualitativa nas comunicações e no entretenimento ganhou espaço, dando novos contornos para o que seriam as relações sociais desde então e, principalmente, para novas formas de subjetivação. Passávamos à era do smartphone, o telefone esperto.

Dificuldades se avolumaram

A partir de 2013, como todos sabemos, as dificuldades se avolumaram, levando à difícil reeleição de Dilma em 2014, resultado que foi contestado por Aécio Neves, seu opositor, destapando o esgoto de desconfianças sobre a fidedignidade das urnas eletrônicas. De resto, a presidente foi apeada do poder e Lula foi preso, pavimentando-se, via lavajatismo e pressões militares, o caminho para que a extrema-direita alcançasse o Planalto.

Na defensiva, e atacada por moralismos e ressentimentos de parte das camadas médias, sobrou pouca força para a esquerda. Tudo mudou muito rápido e o potencial autoritário, desde sempre presente em um país violento e que acabou com a escravidão formal há apenas pouco mais de 100 anos, ganhou terreno fértil e adubado.

Em 2018, já em plena campanha que levaria Jair Bolsonaro à presidência da República, foi lançado o documentário O processo, de Maria Augusta Ramos, sobre o impedimento de Dilma Rousseff. O olhar da diretora é dos mais interessantes, privilegiando o cotidiano, a vida ordinária, principalmente entre os partidários da presidente afastada.

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La pelas tantas, em uma reunião em que prevalece, como de resto em todo o filme, a resignação, Gilberto Carvalho diz que se a derrota vier, ela se dará pelos méritos do que até então os governos liderados pelo PT haviam feito, mas que, no entanto, “nós erramos muito”. Momento raro de autocrítica, eis talvez um dos primeiros problemas nos quais incorrem as forças que resistem ao regressismo cada vez mais explícito: deixar que adversários pouco honestos deitem e rolem, falem cobras e lagartos, restando-nos apenas dizer que eles mentem. É muito pouco e, além do mais, autocrítica não significa autoflagelação – aliás, a primeira é a antítese da segunda e instrumento fundamental para que uma perspectiva dialética se mantenha ativa.

Os anos Bolsonaro foram catastróficos, e a própria chegada ao poder de personagem tão lamentável mostra o estado de coisas a que chegamos. A propaganda maciça e enganosa, além das disposições autoritárias de boa parte da população ajudaram muito, mas a responsabilidade pela ascensão de nefasta figura é responsabilidade também de seus adversários progressistas. A cegueira diante da ameaça, mas também a preferência pelo risco de entregar o poder para a extrema-direita do que a perda da liderança da esquerda, contribuiu muito para o desastre.

O que foi posto no parágrafo acima se deve, em parte, a certo narcisismo que supõe que as esquerdas são herdeiras necessárias do iluminismo, o que, entre outras consequências, as fez acreditar na força do convencimento racional e de que seria impossível decidir por uma figura medíocre como Bolsonaro, no momento da comparação com Fernando Haddad.

Os impulsos para a adesão política nem sempre atendem à razão, muito pelo contrário. Como uma vez apontou Theodor W. Adorno, apoiado nos estudos sobre personalidade antidemocrática realizados na primeira metade do século passado, a inclinação por figuras grotescas, histriônicas, absurdas, bufonescas, extravagantes (somemos: homofóbicas, misóginas, racistas) etc, não se dá apesar de elas serem tudo isso, mas porque atendem a tal perfil. A isso se somou o ressentimento em relação “às elites”, sempre dispostas a dizer como os outros devem proceder, e o sentimento antipetista, traduções do anti-intelectualismo e do preconceito de classe, duas pragas (não só) nacionais.

O engajamento em uma candidatura nem sempre se dá por motivos que poderíamos chamar de racionais, no sentido mais complexo da coisa – ou seja, considerando as propostas de candidatos e candidatas, assim como suas possibilidades de colocá-las em prática –, mas há certa racionalidade que conduz as manifestações afetivas, de identificação libidinal com pares e figuras autoritárias. Se de fato trata-se de uma tendência desde muito presente, ela se acelerou muito no âmbito das redes sociais, plataformas para as quais as estratégias visam impressionar e excitar, e que promovem a cultura do défice de atenção, como aponta Christoph Türcke.

Seu uso sem escrúpulos pela direita, e especialmente pelo seu extremismo, é conhecido, constituindo o que André Singer chamou de Partido Digital. Diz-se com relativa frequência que as forças progressistas vêm perdendo a batalha nesse campo, mas é de se perguntar se é possível, na entropia da irracionalidade, que em tal espaço/tempo o avanço possa prevalecer sobre a regressão. Dito de outra maneira, as técnicas ali desenvolvidas não são neutras, e as subjetividades receptivas ao escândalo e ao escracho, assim como à mentira, talvez não estejam receptivas a ideias avançadas.

Encruzilhada

As esquerdas estão de fato numa encruzilhada e isso talvez não seja de todo ruim. É o momento de encarar certas condições de diálogo e proposição para o presente. Isso passa pelo reconhecimento de que já não é possível administrar expectativas que não serão atendidas e, frente a isso, coloca-se a necessidade de propor modelos de entendimento e organização social que possam aprofundar a democracia.]

A disputa de projetos passa pela atenção ao que as pessoas têm a dizer

Não é fácil, já que mudaram muito as faces dos movimentos sociais e dos partidos populares. O pensamento progressista católico minguou, os sindicatos só têm alguma força entre os trabalhadores públicos, a aposta no personalismo ainda é um fardo difícil de se livrar. As formas de organização do trabalho não são e tampouco serão as mesmas de quando o PT foi fundado – mesmo à época, lembra Márcio Porchman, não era mais de 40% o contingente de operários entre os trabalhadores brasileiros.

Como produzir direitos em meio ao capital financeirizado, à precarização social e ao avanço do obscurantismo? Como estabelecer uma agenda que não seja mera reação às barbaridades e mentiras, puro desmentido a acusações absurdas, mas, ao contrário, proposição de uma pauta para o presente?

Um passo talvez seja escutar mais, buscando bases de apoio popular. Os trabalhadores não são necessariamente revolucionários, tampouco fascistas. Menos ainda os excluídos de tudo, que são muitos no país. A disputa de projetos passa pela atenção ao que essas pessoas têm a dizer. Resta saber o quanto de fato estamos dispostos a escutar.

Alexandre Fernandez Vaz é doutor pela Leibniz Universität Hannover, Alemanha; Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

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Este é o quarto artigo da série Sobre a Perplexidade das Esquerdas, organizada pela Coluna Cidade das Letras

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida