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Uma ode à amizade e à memória

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Marcelo é figura de destaque pelo seu compromisso com os pobres

Por Luciano Mendes

Acabo de ler Deslumbramentos nos encontros e desencontros da vida: marcas das amizades em minha história (Editora Recriar,2024), o 65º livro do monge Marcelo Barros.

A singela apresentação do autor na orelha do livro – “Marcelo Barros é monge, escritor, e teólogo da libertação. Assessora comunidades eclesiais de base e movimentos populares como o MST” – não faz, nem de longe, justiça à biografia do autor e à sua importância para a igreja, a teologia da libertação e às ações empreendidas a favor do ecumenismo e ao diálogo inter-religioso no continente latino-americano.

Em todos estes campos, e em mais alguns, Marcelo é figura de proa e de destaque, tanto por sua erudição e produção, quanto por sua sensibilidade e compromisso com a causa dos mais pobres.

No livro, Marcelo, no momento em que completa 80 anos, faz um relato autobiográfico tendo como fio condutor as suas relações de amizade. Densa e espirituosa, a escrita se inicia abordando a infância e finaliza com reflexões sobre o momento atual. É uma obra que, sem dúvida, há de interessar todas as pessoas que, nas últimas décadas e, nos dias atuais, pensam sobre as relações humanas, os intercâmbios culturais e religiosos e  a vida cotidiana baseada nas amizades e nos compromissos com as lutas por um mundo melhor para todos.

A leitura do livro me tocou muito, e profundamente. Foi, por assim dizer, uma espécie de deslumbramento, de vertigem, pelos sucessivos encontros que me proporcionou. E isso se deve a muitas razões, a começar pelas características mesmo do relato autobiográfico, que muito me cativa, e das conversações em torno da amizade, que muito me mobilizam. 

Na impossibilidade de dizer de todas as razões pelas quais o livro me tocou, queria evocar aquela que mais me mobilizou. 

Benfazejas lembranças

Apesar de ler o Marcelo desde os anos de 1980 – dele fez parte da minha biblioteca A bíblia e a luta pela terra, seu segundo livro, de 1982 –, apenas recentemente eu o conheci pessoalmente – e devemos isso ao Luiz Rena, que o convidou para um café em nossa casa, no Recife.

As histórias que ele conta, as memórias que ele tece, me trouxeram benfazejas lembranças e reencontros com pessoas que ressoam em minha vida, em minha formação e em meus afetos. Isto fez com que a leitura fosse, por assim dizer, uma espécie de reencontro com antigos companheiros e companheiras de caminhada.

Reencontrar, pelas letras do Marcelo, com Carlos Mesters, por exemplo, me fez voltar no tempo e adentrar, mais uma vez, numa pequena sala, no interior de uma vila, na cidade de Contagem (MG), e ouvir maravilhado a facilidade com que aquele frei, franzino e amável, falava sobre a bíblia para um público que, fazendo da vida uma contínua oração, queriam saber mais e mais sobre os textos sagrados.

Reencontrei-me também, de outro modo, nas páginas do livro, com o Afonso Murad, o Luiz Rena e a Adriana de Deus, e com eles retomei o curso da viagem para Região Industrial de Belo Horizonte e sua efervescente vida política e religiosa das últimas décadas do século XX.

Mas não foi apenas com estas pessoas conhecidas que eu reencontrei. Foram muitas, foram várias, foram dezenas as pessoas que desfilam pela sua memória que me tocaram, direta ou indiretamente. Saber, de modo diferente, de Rubens Alves, de Pedro Casaldáliga, de Gustavo Gutierrez, de Camilo Torres, de Luiz Alberto G. de Souza e tantos outros que, sem que eu nunca tenha encontrado pessoalmente, fizeram parte de minha formação intelectual, afetiva e, porque não, espiritual, foi, no transcurso da leitura, motivo de deslumbramento.

De dois poetas, profetas, que, de longa data, cultivo sabedorias e sabenças, Dom Helder Câmara e Manoel de Barros, Marcelo fala com carinho e desenvoltura que chega a me dar inveja (Zuenir Ventura já disse que não há inveja boa, mas.... rss). Ah! Como deve ter sido bom saber-se acompanhado por gente tão especial pelos comprometimentos diversos com as vidas de todas as populações do planeta!

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Mas, assim como fala de seus mestres e mestras, a começar por sua mãe e seu pai, e de seus companheiros e companheiras de geração que o constituíram e foram tocados por ele, Marcelo fala também das gerações mais novas com as quais, igualmente, compartilha a utopia de fazer construir um mundo mais fraterno, mais justo e igualitário.  

Perpassa pelo conjunto do relato as alegrias e imensas frustrações de Marcelo no intento, pessoal e coletivo, de tornar mais denso e construtivo o diálogo ecumênico e inter-religioso no Brasil e no mundo.

Marcelo recupera a famosa assertiva de Guimarães Rosa de que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” para dizer daquilo que, em boa parte, permanece como utopia, ou, na melhor tradição de Paulo Freire (que também comparece no livro!), o inédito viável.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida