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Sem a dignidade dos trabalhadores, não há SUS do tamanho do povo brasileiro

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Foto - Divulgação CNS
Usuários e trabalhadores do SUS apontam o rumo do avanço da consciência pública sanitária

Por Ronaldo Teodoro 

O ano de 2024 pode ser reconhecido como o ano de reafirmação da importância da carreira pública do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre os dias 10 e 13 de dezembro, a unidade entre quem vive do trabalho, dentro e fora do SUS, foi novamente reafirmada na 4º Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (CNGTES), realizada em Brasília. 

Um fato importante dessa caminhada é que, nas dezenas de conferências Municipais, Estaduais e Livres realizadas ao longo do ano, a agenda dos direitos de quem trabalha no SUS contou com uma profunda solidariedade de classe por parte dos usuários do sistema. 

Agenda dos direitos de quem trabalha no SUS conta com solidariedade de classe

Como 75% das pessoas que trabalham no SUS são mulheres não-brancas, a reivindicação de um plano de carreira no sistema não é apenas uma questão distributiva de classe, mas uma posição contra as exclusões raciais e de gênero.

Na linguagem política do sanitarismo popular, pode ser dito que “saúde é trabalho e trabalho digno é a democracia na saúde”. Esse dístico poderia ser uma síntese das discussões e encaminhamentos deliberados pelos mais de 2 mil delegados e delegadas (usuários e trabalhadores) reunidos na 4º CNGTES. 

Estratégias gerencialistas

Como principal agenda do encontro, a reivindicação e as propostas de formação de um plano de carreira representaram uma denúncia clara às várias estratégias gerencialistas de contratação laboral no SUS.  

Passados 18 anos desde que se realizou a última Conferência do Trabalho no SUS, os efeitos deletérios da profunda experimentação de contratos laborais precários parecem ter o sentido inverso de fazer amadurecer a convicção política de um Plano de Cargos, Carreira e Salários no SUS. 

Um princípio de resistência contra-hegemônica ficou evidenciado na ampla rejeição aos vínculos intermediados por Organizações Sociais de Saúde (OSS), Fundações Públicas de Direito Privado, Consórcios Intermunicipais e nos experimentos viabilizados por meio do Serviço Social Autônomo.   

SUS sofre com estratégia gerencialista 

Desde que a saúde se tornou um “serviço não exclusivo de Estado” – um eufemismo para abrir o SUS para exploração empresarial –, a dor diária de quem vive os efeitos do contrato de trabalho flexível explodiu no SUS. 

Outro artifício da retórica jurídico-institucional gerencialista foi a chamada “publicização”, que apontava as formas terceirizadas de gestão como meio de superar os supostos vícios da administração direta – como o centralismo, o autoritarismo, o formalismo e a tutela burocrática. 

Impactos

Na prática, esse programa gerencialista mudou a natureza do Estado e atacou a estrutura da carreira pública durante a expansão do SUS. A 4ª Conferência do Trabalho nos permite identificar que a base popular trabalhista da sociedade brasileira rejeita frontalmente esse pensamento de gestão gerencialista que, em parte, foi sendo assimilado dentro do próprio campo da saúde coletiva.

A localização dessas duas posições dentro da reforma sanitária contemporânea tem um valor fundamental. Se o avanço da agenda gerencialista se ancora em um circuito estreito do alto círculo de gestores, à revelia da participação social presente no SUS, é possível afirmar que essa posição possui um forte déficit democrático. 

Isso considerado, o que a 4ª Conferência nos aponta é que os princípios gerencialistas se impõem mais pela força do que pelo consenso. 

Posição gerencialista é pouco democrática

A implementação forçada do gerencialismo contra a vontade popular sanitarista, se mantida progressivamente no tempo, é insustentável para quem toma decisões. Isso é verdade até mesmo para regimes de Estado. 

A ruptura crescente entre um segmento que pensa e atua na gestão e os trabalhadores e usuários que fazem, vivem, pensam e experimentam o SUS no seu cotidiano está indicando antes o fracasso gerencialista do que a sua vitória histórica.

Em 2025, o conjunto de diretrizes articulados em torno do programa da carreira no SUS terá pela frente o desafio de acumular forças políticas. 

Posições enfáticas de defesa da carreira estatutária, como declarado pela ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, serão parte importante do apoio que a aspiração popular trabalhista precisará para repor na arena da política os ideais da 4º CNGTES. 

Nesta quadra da história, são os usuários do SUS e os trabalhadores e trabalhadoras do sistema que, mais uma vez, apontam o rumo, o ideário e a forma de fazer avançar a consciência pública sanitária. O ensinamento é que, sem a dignidade dos seus trabalhadores, não é possível fazer um SUS do tamanho do povo brasileiro. 

 

Ronaldo Teodoro é professor de Ciência Política no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Ana Carolina Vasconcelos