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Coluna

A lenta dança do colapso da mobilidade urbana em Belo Horizonte

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Reprodução - Luiza Bechtlufft
Aumento de tarifa é apenas o sintoma mais cruel de um sistema viciado

Por André Veloso

No dia 23 de dezembro de 2024, quem estivesse a pé no centro de Belo Horizonte poderia constatar o absoluto colapso do trânsito de veículos na cidade. Engarrafamentos, cruzamentos travados em todos os sentidos por veículos se amontoando e querendo se ultrapassar (os chamados “gridlocks”), buzinas, fumaça, tensão e inícios de briga, e passageiros descendo dos ônibus para completar seu trajeto a pé.

Não, não havia nenhuma manifestação travando o trânsito, nem “acidentes” bloqueando vias. Nenhum motivo excepcional desses que povoam os noticiários de rádio e os jornais da hora do almoço sobrevoando o trânsito. Nada, a não ser o fim de ano. O que causou a pane foi simplesmente o excesso de veículos nas ruas.

Assim como as chuvas torrenciais e as secas prolongadas que nos assolam, BH vive, nesse microcosmo do trânsito, o espírito do nosso tempo: a apatia diante do caos. Eventos extremos, que eram tratados como raros, se tornam cada vez mais comuns. E, sintomaticamente, ao invés de estas ocorrências moverem a sociedade para a tomada de iniciativa necessária para a reversão desse quadro, passam a ser incorporadas no cotidiano, como se fizessem parte de nossa paisagem e sempre estivessem lá.

É o que tem ocorrido com a questão da mobilidade, do transporte coletivo em especial, em Belo Horizonte. O colapso já chegou. Para enfrentá-lo, é necessário sair da normalidade e das ferramentas comuns.

A prefeitura de Belo Horizonte, entretanto, tem feito exatamente o contrário. Diante de uma concessão de transporte coletivo totalmente viciada, cuja licitação e concorrência em 2008 estão cercadas de indícios de fraude e formação de cartel, e de um contrato que só fez reduzir a quantidade e a qualidade dos ônibus enquanto aumentava a tarifa, a resposta no final desse ano foi a de sempre: aumento de 50 centavos na tarifa e anúncio de milhões em subsídios, enquanto a concessão permanece intocada.

A tarifa principal chega a R$5,75, o maior valor do sudeste e segundo maior do país. E, em um desarranjo grotesco, as chamadas linhas “alimentadoras” e circulares, concebidas para serem mais baratas em função de seu trajeto mais curto, estão em absurdos R$5,50. Pegar ônibus na capital mineira é, para todos os efeitos, a experiência mais cara do país.

Prefeitura erra

Em sua justificativa protocolar, a prefeitura alega que tem sido mais “dura” com as empresas de ônibus e que isso se refletiu na qualidade do sistema. Apesar da tão propagandeada “tolerância zero”, acidentes e atrasos ainda fazem parte da nossa paisagem. Empresas líderes de reclamação e acidentes continuam operando tranquilamente.

A prefeitura erra porque parte da premissa de que é possível conviver com o atual contrato e com o atual empresariado de ônibus de Belo Horizonte. De fato, não se vê nas últimas ações da PBH e de seus gestores nenhum elemento de qualquer outro caminho tomado que não seja o da conciliação com os donos das empresas de ônibus. E isso é mais evidente quando prefeito e superintendente são vistos mais de perto.

Fuad Noman, atual prefeito reeleito, foi quem conduziu a licitação do sistema de transporte metropolitano por ônibus da Região Metropolitana de BH, em 2007, quando secretário de transportes do governo Aécio Neves, concedendo nada menos que singelos 30 anos de exploração das linhas de ônibus para empresas como Saritur, Transimão e afins. Como constatado diversas vezes na CPI dos transportes e pelo Ministério Público de Contas, o prefeito é amigo próximo de Rubens Lessa, principal empresário à frente do grupo Saritur e dirigente do Sindicato das empresas de transporte metropolitano e da Federação das Empresas de Transporte de Passageiros de Minas Gerais há décadas.

André Dantas, superintendente de mobilidade urbana da prefeitura, à frente do cargo há dois anos, também trabalhou dez anos na Associação Nacional de Empresas de Transporte Urbano (NTU). O ponto aqui não são hipotéticas relações espúrias, e sim uma trajetória que liga esses dois gestores umbilicalmente ao ponto de vista do empresariado de ônibus urbano de Belo Horizonte e, portanto, os impede – em absoluto – de enxergar saídas para a situação que contrariem o interesse desse setor, poderoso econômica e politicamente em Minas Gerais.

Tolerância zero: será?

Como é possível alegar tolerância zero, ou resolver o problema dos ônibus em Belo Horizonte, quando não se questiona o formato das empresas que humilham cotidianamente o passageiro em seus veículos?

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Empresas que normalizaram a ausência de cobradores, que sobrecarregam motoristas com a dupla-função, que normalizaram o elevador como solução de acessibilidade, que pulam o quadro de horários sem nenhum constrangimento, que, na primeira oportunidade, instalam catracas duplas em seus veículos metropolitanos, que não se envergonham em fazer apenas a manutenção “corretiva” depois que acidentes como perda de freio e desprendimento do eixo ocorrem, ignorando em absoluto a manutenção preventiva.

O problema está na gênese dessas empresas e desse empresariado que nasceu e cresceu dominando privadamente todo o sistema produtivo que envolve o transporte de passageiros: são donos das garagens, do sistema de bilhetagem eletrônica, de postos de combustível, avalizam itinerários e quadro de horários, repassam veículos velhos para suas próprias empresas subsidiárias em municípios menores, fazem listas de exclusão de funcionários tidos como “subversivos” que não conseguem ser contratados por nenhuma empresa em Minas, e assim por diante.

Décadas de descaso

São décadas de patrimonialismo, maximização de lucro e poder e descaso com a população.

O ponto é que a alegada “regulação” do sistema, como licitações e concessões, só chegou muito depois desse empresariado se consolidar. Muitas empresas estão no sistema há mais de 60 anos, enquanto a primeira licitação – com cartas marcadas – ocorreu há 26 anos e a segunda, a atual, há 16 anos. Mesmo diante da lenta e continuada crise de rentabilidade do setor, pelo menos via receita tarifária, os empresários maiores permanecem e fagocitam os mais frágeis, retroalimentando uma influência sobre o serviço que eles próprios consideram como sendo deles por direito.

Mesmo a lei de subsídio e pagamento via quilômetro rodado, uma demanda histórica de movimentos como o Tarifa Zero BH, não foi capaz de resolver de fato essa questão.

Sem acesso aos custos de fato e sem a predisposição para encerrar o contrato, as alegadas melhorias se deram em um ritmo lento, que não estanca nem a perda de passageiros e nem o colapso do trânsito. Sintomaticamente, os que mais sofrem nesse arranjo são os permissionários de transporte suplementar, microempresários que não possuem mecanismos de defesas como os das grandes empresas.

Enquanto isso, centenas de milhões de reais saem dos cofres públicos para subsidiar empresas cujo funcionamento não conhecemos, cuja capacidade de maquiar custos já foi provada em outros momentos, e em que vários indivíduos proeminentes que figuram em seus quadros societários já foram flagrados, mais de uma vez, utilizando-se de sua posição e de recursos públicos para obter vantagens desiguais. Basta digitar “CPI ônibus casamento BH” no Google para entender a linha geral do que se está dizendo.

As crises climática, econômica, urbana e política que se sobrepõem em nossa sociedade gritam contra a acomodação e clamam por soluções radicais, estruturais. O subsídio – cuja lógica de financiamento indireto por toda sociedade é bem-vinda – não resolverá o problema dos ônibus quando se vê que as grandes empresas e seu longevo empresariado não entrará nos eixos. Tal qual o escorpião da fábula, se for o caso, preferirão afundar com o sapo-trânsito a ceder o controle da situação.

Portanto, o aumento de tarifa é apenas o sintoma mais cruel de um sistema viciado. Barrar o tarifaço é o primeiro passo para demonstrar que o atual sistema não pode mais seguir em frente.

Tem solução

É preciso encerrar esse contrato anacrônico e fraudulento e ir além: criar mecanismos de controle público e popular sobre o transporte, diretamente contra a atual forma das empresas de ônibus. Garagens e sistemas de bilhetagem e financiamento devem ser absolutamente públicos, submetidos a claro escrutínio popular. Se a autogestão ainda é uma miragem distante, pelo menos novos atores devem ser chamados à baila.

Elementos jurídicos concretos devem ser mobilizados para banir as atuais empresas parasitárias de atuarem em Belo Horizonte. Fornecimento de veículos devem ser licitados separadamente de sua operação. Tornar os prestadores de serviço de transporte público menores política e economicamente é o caminho para que o controle público e popular possa se afirmar como uma lógica de retomada da mobilidade urbana e da cidade.

Apenas com esse horizonte de mudanças é possível se mover. E apenas com novas ferramentas será possível alterar essa realidade. Sem grandes mudanças, continuaremos sendo dragados pelo maremoto enquanto tentamos nadar.

André Veloso é economista, integrante do Movimento Tarifa Zero BH e defendeu em 2023 a tese de doutorado em Economia pela UFMG intitulada: “A Era do Ônibus: formação, ascensão e hegemonia do empresariado de ônibus urbano em Belo Horizonte - 1950-1990”

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Este é um artigo de opinião. A visão do/a autor/a não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Elis Almeida