As artes podem nos ajudar a elaborar nossos demônios e nossas doçuras
Por Luciano Mendes
Há, no interior da igreja do Santuário do Caraça, uma Última Ceia, do Ataíde (Manuel da Costa Ataíde – 1762/1830), pintada em 1828, que é muito emblemática: nela, Jesus Cristo e os 12 apóstolos estão dispostos em torno de uma mesa, como sempre, servindo-se de vinho e pão. Mas, diferentemente de outras ceias conhecidas, na do Ataíde há uma verdadeira festa, com a presença de pessoas negras, copo de vidro e com direito a carícias e olhares libidinosos por parte dos personagens.
Acostumadas que estão à Santas Ceias bem comportadas e buscando uma réplica do quadro orginal (Última Ceia, pintada entre 1405-1498 por Leonardo da Vinci – 1452/1519), as pessoas tendem a ficar incomodadas com a ousadia do pintor mineiro. No entanto, o que Ataíde faz é justamente utilizar as propriedades da arte na transfiguração de seu tempo. E lá onde o visitante busca conforto do mesmo, o quadro traz o deslocamento do olhar e um certo desassossego.
As artes e, dentre elas, a literatura, não servem apenas, ou, eu diria, fundamentalmente, para nos confortar e apasiguar nossos demônios. Pelo contrário, um função cultural fundamental das artes é dar visibilidade aos nossos incômodos e às nossas desventuras. E nisso a literatura também é pródiga.
Palavrear o racismo
Este é o caso, por exemplo, do livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Cia das Letras, 2024). A obra apresenta, numa narrativa elegante e pungente, uma contundente denúncia do racismo que estrutura a sociedade brasileira. O livro seria mais uma com este enfoque não fosse a maestria do autor na construção de personagens que palavreiam, de várias formas, o racismo sentido na própria pele e como o mesmo (racismo) é estruturante também das subjetividades e de nossas ações cotidianas.
A densa narrativa de Tenório nos faz lembrar (e sentir) que no avesso da pele somos todos iguais, mas que no dia-a-dia isso nada vale na estruturação de nossas relações interpessoais.
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Escrever, palavrear, lembrar as violências racistas e as estruturas sociais racializadas que atuam em nosso cotidiano, são as únicas formas de elaborarmos, assim como são condições para produzirmos a consciência dos privilégios da branquitude e, ao mesmo tempo, para a sua superação.
É por isso que, ao invés de proibir a leitura do livro de Tenório, como se tentou, dever-se-ia incentivar a sua leitura em todas as escolas brasileiras, e, quem sabe, a sua leitura pública nas Câmaras Municipais e Academias de Polícia de todo o país.
Palavrear o fracasso
Com toda razão muito se tem falado de Fernanda Torres, nos últimos dias, como a ganhadora do Globo de Ouro de Melhor Atriz. Justo reconhecimento pelo seu talento e seu trabalho como atriz. A filha de Fernanda Montenegro e Fernando Torres é, também, uma ótima escritora. O livro A glória e seu cortejo de horrores (Cia das Letras, 2017) é uma prova disso.
A autora constrói a história em torno de um ator, sua iniciação ao teatro, suas glórias, seu retumbante fracasso e seu reencontro com a arte cênica em condições totalmente adversas. A narrativa é muito boa para pensar e sentir a vida. Eu, lá pelas tantas, me vi atravessado, por exemplo, pela ideia de que "é muito difícil se reinventar aos 60". Será?
A não percepção do envelhecimento da mãe, o distanciamento em relação aos familiares e aos amigos são algumas das características da experiência do sucesso para Mário Cardoso, o protagonista. E quando advém a baixa, com quem contar? É lá entre os deserdados de tudo que ele vai encontrar alguma luz no meio do seu túnel pessoal.
Como já disse, as artes podem nos ajudar a elaborar, a representar (a re-apresentar) nossos demônios, nossos horrores e nossas doçuras. Mas, para isso, é preciso disposição e trabalho. O mais, é a mesmice.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida