No Brasil, 30% dos professores trabalham em mais de uma escola, nos EUA 1,7%
Por Natália Gil e Luciano Mendes
Não é de hoje que a profissão docente tem sido associada a termos como missão, vocação e sacerdócio. Essas metáforas religiosas, por vezes consideradas belas palavras para falar dos e das professoras, cumprem, na verdade, uma função nefasta por romantizarem o esforço e, às vezes, o sofrimento docente como vontade divina e, portanto, como algo incontornável. Em alguns casos, fica até parecendo natural que o cotidiano de quem trabalha em educação tenha que se assemelhar a um calvário!
Entre as muitas dificuldades que caracterizam as condições de trabalho dos professores, está a necessidade de atuar em mais de uma escola. Um levantamento recente mostra que 19,4% dos professores da Educação Básica atuam em múltiplos estabelecimentos de ensino. Entre os professores do Ensino Médio e dos anos finais do Ensino Fundamental a situação é pior, passando de 30% aqueles que precisam acumular duas ou mais escolas.
Segundo dados da OCDE, no Brasil essa situação é pior do que em outros países. Nos Estados Unidos, esse percentual fica em torno de 1,7%, no Japão está em 2,7% e na França não passa de 5%.
A realidade é que as professoras, sobretudo se estiverem em início de carreira, vão começar a trabalhar longe de onde moram e terão que atuar em pelo menos duas escolas. Se forem os docentes de áreas curriculares com menor carga horária no currículo – como artes, educação física, biologia, sociologia ou química –, não é raro que tenham que peregrinar em três ou quatro escolas para completar um total de horas-aula capaz de garantir uma remuneração que permita viver.
Evidentemente, os baixos salários pioram esse quadro e não podemos esquecer que, quando se trata de cidades maiores, o trânsito e as distâncias penalizam ainda mais esses profissionais. Em lugar de usar o tempo para preparar novos materiais e estratégias de aula, estudar as novas abordagens pedagógica ou se atualizar sobre o que há de novo em sua área de conhecimento, o professor vai passar horas e horas de sua semana se deslocando de uma escola a outra, depois a uma terceira... e de novo à primeira.
Não raramente, no interior do país, professoras precisam “rachar” um transporte rápido (uber, por exemplo) para se deslocarem de um município a outro para completarem suas cargas horárias, já que não podem contar com o transporte público para cumprir os horários de suas aulas. Não é preciso mencionar que a exaustão acaba se somando a outros fatores e levando a um compreensível desânimo.
Implicações pedagógicas
Só que o problema não para por aí. Os prejuízos não se restringem aos professores. Há implicações pedagógicas importantes que precisam ser consideradas. A principal delas diz respeito à qualidade do ensino.
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Qualidade do ensino é o tipo de questão em que é fácil chegarmos a um consenso – não há quem não defenda que a escola deva ter cada vez mais qualidade –, mas é difícil dizer precisamente do que se trata. O que tem prevalecido nos últimos 30 anos é a compreensão de que seria a quantidade de conhecimentos que os alunos acumulam. Daí a preferência geral em utilizar provas e índices como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) para verificar se uma escola tem qualidade.
Mas se pararmos para pensar um pouco mais, vamos concordar que uma escola tem qualidade quando a infraestrutura é adequada ao ensino, quando os materiais são apropriados e em quantidade suficiente e quando não faltam professores.
Esse último ponto tem merecido atenção recentemente em função de uma iniciativa do governo federal da qual já falamos aqui, o Programa Mais Professores, que pretende tornar a profissão docente mais atrativa. Isto porque já não há professores em número suficiente em várias disciplinas e há o temor de que em breve não tenhamos para a maioria delas, visto que os cursos de licenciatura estão entre os menos procurados nas universidades.
A preocupação é respeitável: se não tivermos professores nas escolas, não haverá ensino e, sem ensino, não há nenhuma possibilidade de mantermos a qualidade.
Ocorre que as condições de trabalho das professoras são precárias em muitas redes de ensino por todo o país. E isso inclui as escolas privadas. Umas dessas precariedades é justamente o fato de que muitos docentes não podem se fixar em apenas uma escola. Outro problema, vinculado a esse primeiro, é que as jornadas de trabalho não incluem horas suficientes para a atuação fora de sala de aula, com a preparação das atividades, correção dos trabalhos feitos pelos alunos, desenvolvimento de outros projetos na mesma escola, para além das aulas especificamente.
Sem essas atividades, por um lado, as professoras ficam obrigadas a usar seu tempo livre, especialmente seus finais de semana, para preparar material e corrigir trabalhos. Não existe professor que trabalhe apenas enquanto está em sala de aula!
Por outro lado, sem desenvolver projetos variados, o que acontece é que os professores não conseguem estabelecer vínculos fortes com a alunos, os colegas e a comunidade escolar. Não conseguem saber, por exemplo, o nome de todos os seus alunos. Não conseguem acompanhar o que tem acontecido no entorno da escola.
Sem vínculos fortes, sem qualidade de ensino
Sem esse tipo de vínculo não há qualidade de ensino. Os alunos não são potes que devam ser enchidos de conteúdo curricular. Paulo Freire, já na década de 1960, repudiava essa lógica ao criticar a “educação bancária” que caracterizava as escolas de seu tempo. Os professores não são equipamentos de preenchimento de alunos-potes. É preciso dizer o óbvio: não somos máquinas! Educar é um processo humano e, portanto, para que seja bem sucedido, precisa acontecer a partir do estabelecimento de vínculos fortes.
Assim, é preciso aprofundarmos com mais sinceridade e humanismo – e menos neoliberalismo e economicismo – o debate sobre a qualidade do ensino. E isso passa por garantirmos que cada professora possa trabalhar 40 horas em uma única e mesma escola, como foi feito, há décadas, no ensino superior público, em que o docente tem dedicação exclusiva a um único departamento. Aliás, a respeito disso, é impressionante como muitos “formadores” ou formuladores de políticas, instalados em suas salas e gozando desta dedicação exclusiva a uma única universidade ou centro de pesquisa, se esquecem disso quando vão falar da “qualidade da escola básica”.
Talvez esteja aqui, também, uma das origens das disfuncionalidades das políticas que visam “elevar a qualidade da escola pública” no país.
Luciano Mendes (UFMG) e Natália Gil (UFRGS) são editores da coluna Cidade das Letras do Brasil de Fato MG.
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida