Minas Gerais

CRISTIANISMO

‘Quem é cristão é a favor da paz’, diz mineira reconhecida pelo Papa Francisco

Lucimara Trevisan reflete sobre os ensinamentos do Papa Francisco e o papel da religião no mundo hoje

Belo Horizonte (MG) |
"o rosto do Cristo é o rosto do outro" - Foto: reprodução

O Papa Francisco, em cerimônia na basílica de São Pedro, concedeu a 40 fieis leigos, homens e mulheres de diferentes países, o ministério do Leitorado. A ação aconteceu no dia 26 de janeiro. Entre os quatro brasileiros escolhidos está a mineira Lucimara Trevisan, da Arquidiocese de Belo Horizonte. 

Lucimara é coordenadora da Comissão Bíblico-Catequética do Regional Leste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Assistente Episcopal para a Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte e diretora do Centro Loyola. 

Em entrevista ao Brasil de Fato MG, ela refletiu sobre o ministério recebido, concedido pela igreja católica a mulheres somente desde 2021. 

“Para mim, confirma um serviço que eu faço e que, agora, recebe essa estatura de instituído,  para sempre,  para a vida inteira, esse compromisso de proclamar a palavra de Deus”, afirma Trevisan.

Além disso, ela debate importantes questões para a sociedade atualmente, como o papel da formação bíblica, o negacionismo, a desigualdade, a ecologia integral e o papel da igreja e dos fieis. 

Confira a entrevista completa: 

Brasil de Fato MG - O que simboliza o ministério do leitorado recebido por você? 

Lucimara Trevisan - É um ministério que o seminarista recebe no processo formativo, antes de ser ordenado padre. Na época do Papa Paulo VI, na década de 70, ele estendeu esse ministério a homens leigos. O ministério do leitorado é instituído, o que significa que ele é um ministério para a vida toda.

É um ministério ligado à liturgia, sobre proclamar a leitura nas celebrações da igreja, eucaristia e outros sacramentos. Quer dizer ainda que a pessoa também atua na proclamação da Palavra no cotidiano, pelo seu testemunho, pelo trabalho e anúncio da palavra de várias formas. 

Hoje, nós temos podcasts,  aplicativos e  grupos de reflexão bíblica, por exemplo. Eu entendo o ministério não só litúrgico, mas também de atuação cotidiana.

Acontece que, na Igreja no Brasil, foi criado o Ministério da Palavra, que é um serviço confiado pelo bispo diocesano a leigos nas paróquias, para que eles façam a proclamação da Palavra na hora da missa, a liturgia da Palavra, etc. O que inclusive já era concedido a mulheres. Isso, para nós no Brasil, é mais comum. 

Para o Papa é importante que as mulheres terem mais destaque na Igreja

A partir da constatação de que as mulheres precisam ter lugares de importância e decisão dentro da Igreja Católica, o Papa Francisco estendeu em 2021 o ministério do leitorado não só a homens, mas também a mulheres. Isso é inédito.

Além disso, ele instituiu também, o último domingo de janeiro como o domingo da Palavra de Deus. Nesse dia, ele faz a celebração solene em Roma, fala sobre a importância da Palavra e institui leigos no Ministério do Leitorado. Homens e mulheres a serviço da Palavra de Deus. 

Quando me foi feito o comunicado de que eu fui escolhida para receber esse ministério do Papa Francisco,  eu logo imaginei que era devido a essa atuação na comissão bíblico-catequética, foi uma indicação da CNBB. Para mim, foi uma surpresa, não acreditei. Após o contato de Roma, eu fiquei realmente muito surpresa, muito comovida, achando que eu não merecia tanto. Contei para poucas pessoas, quando soube. 

Fui a Roma para a celebração, que foi uma experiência única. Não tem como nomear tamanha beleza. Que celebração bonita. Que homilia maravilhosa dele, chamando a todos a serem servidores da Palavra de Deus. Também o rito da instituição e do ministério é muito bonito. É feita a proclamação do Evangelho e passa-se o microfone um por um e respondemos: "Eu estou aqui". 

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Eu fiquei muito comovida, muito impactada com a beleza da celebração, com o silêncio. Havia mais de 7 mil pessoas dentro da Basílica de São Pedro, um silêncio absoluto, uma música maravilhosa. O Papa Francisco tem uma presença muito significativa.  

Antes da celebração começar, ele chamou o grupo das 40 pessoas, do mundo todo, que receberam o ministério, num lugar reservado atrás do altar na Basílica de São Pedro, porque ele queria cumprimentar cada um. Perguntou o nome de todos e de onde éramos, olhando nos olhos e apertando a mão de todos.

Para mim, confirma um serviço que eu faço e que, agora, recebe essa estatura de instituído,  para sempre,  para a vida inteira, esse compromisso de proclamar a Palavra de Deus. 

O Papa Francisco tem nomeado mulheres para postos importantes no Vaticano, incluindo postos de comando. É possível esperar que venhamos a ver a Igreja Católica ordenando mulheres como padres e bispos?

Há algum tempo, o Papa colocou uma irmã à frente do Dicastério para a Vida Consagrada e, ao invés de colocar o cardeal como prefeito, ele colocou ela. Isso é uma coisa inédita. Ele diz que é importante as mulheres terem mais destaque na Igreja, mas ele não só diz, ele começou a fazer, ele dá o primeiro passo. Isso é muito bacana. 

Aqui em Belo Horizonte, Dom Walmor, já há um tempo, faz algo parecido. Na direção dos vicariatos, tem sempre um padre, mas tem sempre uma mulher que é Assistente Episcopal.

Eu acho que o Papa Francisco é esse que dá testemunho, “faça”.

Agora, sobre mulheres consagradas como padres e bispos, eu acho mais difícil. Já que o trâmite para isso vai supor mais tempo. O Papa vem criando comissões que dão uma visão sobre o que pode ser feito  para ampliar a participação de mulheres nos ministérios, na vida da Igreja de maneira geral, e  no diaconato.

Seguir Jesus Cristo é aprender a partilhar, ser solidário, defender a vida humana e do planeta 

Eu acho que o mais importante é valorizar e dar destaque ao que as mulheres leigas já estão fazendo. Elas assumem várias frentes de pastorais, de trabalho em várias áreas. 

Além disso, é fundamental que a igreja compreenda a importância, por exemplo, de ter mulheres nas equipes de formação dos seminários, que estão preparando os padres. Isso ajuda a modificar o olhar para as coisas que nós estamos fazendo, para a evangelização. Ajuda a melhorar o caminho todo.

Nesse sentido, acho que demos passos e vamos dar mais passos. Mas, para chegar ao ministério presbiteral, é mais longo o caminho.

Seu trabalho na Igreja Católica está muito ligado à formação. O que significa catequese e qual a sua importância? Como a formação catequética pode despertar as pessoas para questões latentes hoje em dia, como a empatia e o humanismo?

Na formação dos catequistas hoje, é fundamental  a compreensão de que o foco central da catequese é anunciar Jesus Cristo, é levar a adesão a ele, o desejo de segui-lo. 

Ao fazer isso, seja com crianças, jovens ou adultos, o catequista ajuda a pessoa a compreender o que significa amar Jesus Cristo e segui-lo na comunidade, dar o testemunho dele no mundo. 

Isso implica aprender a partilhar,  a ser solidário,  a defender a vida humana e do planeta também. Defender isso que hoje chamamos de causas, que são tão importantes. Quem é cristão, quem segue Jesus é a favor da paz e vai defendê-la, é contra violência, é contra tudo que impede a dignidade humana.

Ao fazer o anúncio de Jesus e levar essa criança, jovem ou adulto a se apaixonar por ele, a querer segui-lo na comunidade cristã,  a catequese indica os caminhos. 

É o compromisso com o reino de Deus, quando há entre nós a amizade, a fraternidade, a justiça, a saúde e a  paz. Tudo aquilo que vai dignificando a pessoa humana. 

Então, quem é catequista hoje tem um papel fundamental. Orientamos isso nas formações, ser a pessoa que, ao anunciar Jesus, faz o que ele fez: defende a vida, ajuda as pessoas a descobrirem a ecologia integral e um estilo de vida mais simples, distante de um consumismo desenfreado. 

A maioria imensa das catequistas são mulheres e, portanto, sensíveis a isso. Acho que demos muitos passos, mas precisamos ainda dar mais.

Recentemente, temos visto, a partir da eleição nos Estados Unidos, uma massiva deportação de famílias, sem respeito aos direitos humanos. No contexto da posse de Donald Trump, uma bispa anglicana fez um discurso muito contundente, pedindo ao novo presidente respeito e misericórdia com os migrantes. Como, em sua opinião, devem agir as pessoas crentes em Deus e as próprias instituições religiosas nesse contexto?

Por aderir à proposta de Jesus, normalmente, as igrejas cristãs, não só a católica, defendem a vida  humana  e combatem o que é contrário a isso, essa  cultura de ódio e de morte. 

De maneira específica, na Igreja Católica hoje, nos Estados Unidos e também no Brasil e na América Latina como um todo, há um movimento de defesa dos migrantes, dos refugiados. 

A Igreja Católica nos Estados Unidos tem instituições que defendem e ajudam os brasileiros lá e que, provavelmente, são contrários ao que está acontecendo. Não tenho dúvida disso. 

O que Papa Francisco faz é coerente com o que a Igreja sempre ensinou

No Brasil, há congregações religiosas, por exemplo os jesuítas, que têm um serviço  a migrantes e refugiados. Eles estão principalmente em Roraima,  Belo Horizonte,  Brasília e em vários outros lugares, ajudando migrantes e refugiados. Há todo um trabalho muito silencioso que, às vezes, não aparece, mas que mostra que nós não estamos parados. 

A Igreja, de maneira geral, está atuando fortemente em relação a isso, que é uma situação humanitária mundial. O que acontece é que às vezes não é noticiado. Mas, por exemplo, Belo Horizonte tem um trabalho muito interessante com os imigrantes e refugiados. 

O cristão é esse que não fica de braços cruzados diante da situação de miséria, de injustiça, que acontece com um outro ser humano. Por causa de Jesus, que veio para que todo mundo tivesse vida plena.

O Papa Francisco, desde que assumiu, tem sido uma figura profética, por se posicionar de maneira mais progressista. Como você enxerga seus posicionamentos? Qual a importância dele hoje no cenário mundial?

Eu acho que hoje ele é, sem dúvida nenhuma, um grande líder mundial. Pelo testemunho, pela coerência, pela maneira como ele vê as grandes questões da humanidade.

Quando ele assume o pontificado e depois publica um documento que se chama “Alegria do Evangelho”, já dá para ver a linha que ele vai adotar. No fundo, é fazer acontecer o que o Concílio Vaticano II, há mais de 50, pediu que a Igreja fizesse.

Ele atualiza os documentos do Concílio, traduz de uma maneira nova as grandes questões. Agora, ele retoma com um vigor talvez mais intenso, compreendendo a Igreja dentro desse cenário mundial e qual é o papel dela. Olha para a Igreja refletindo como ela está sendo servidora de Deus e de Cristo no meio dessa humanidade.

Sobre aquilo que ele vai apontando,  e que nos causa uma surpresa positiva, é evidente que não há unanimidade. Há os que não compreendem ou que não têm uma formação muito embasada para compreender. Mas, neste mundo violento, de ódio, ele vai propor esperança, vai se posicionar contra a guerra.

Tudo o que ele faz e se posiciona é coerente com o que a Igreja sempre ensinou. Eu sempre olho as reações negativas, a partir do aspecto de que, às vezes, a gente não conhece bem os documentos da Igreja, o que o Papa João Paulo II dizia, que foi um forte defensor do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. Então, acho que é uma falta de formação  muito grande dos leigos, falta de compreensão de que a gente precisa melhorar.

Tem crescido o número de grupos negacionistas da ciência, que se aproveitam das crenças para atrair seguidores. Como as Igrejas de diferentes denominações, e mais especificamente o processo de formação dentro da Igreja Católica, podem agir para combater esse problema? 

Temos agido. Talvez precise reforçar e ampliar ainda mais. Temos que agir no sentido de oferecer a possibilidade dos leigos, cristãos e católicos fazerem mais formação, terem conhecimento daquilo que é a base da tradição cristã, da Bíblia. Mas não uma formação qualquer, precisamos de uma formação que venha com fidelidade ao que a igreja ensina. Eu diria, na verdade, que é colocar em prática aquilo que a tradição da Igreja já diz.

Agora, lidar com grupos negacionistas dentro da igreja é um exercício que teremos que fazer, de paciência também. 

Mais do que nunca, a tarefa é educar para o diálogo, para o consenso, na formação e na catequese. Porque a guerra e a dicotomia não vão levar a lugar nenhum, ao contrário, vai ser um anti testemunho de Jesus. Realmente, é complicado, porque há grupos muito bem preparados, que têm dinheiro para investir em redes sociais e outros meios,  atingem pessoas que não têm nenhuma formação, e elas são influenciadas. É  um momento muito delicado. 

 Todos têm essa tarefa de conscientizar, para que a gente perceba que o rosto do Cristo é o rosto do outro

Mas eu ainda acredito que oferecendo a possibilidade de uma boa catequese, de formação para os leigos, isso ajuda as pessoas a terem o discernimento.

Hoje, você vê os influencers, sejam católicos ou de outras igrejas, e eles dizem "nós estamos evangelizando". Mas aí, a figura dele é que aparece em primeiro lugar e não a do Cristo.  É preciso compreender que eu gosto daquela pessoa, daquele santo, por exemplo, porque ele me ajuda a entender melhor e é testemunha do Cristo. E não porque eu endeusei aquela pessoa. Eu sigo é Jesus, ele que é o centro.

O processo de empatia para com o próximo pode ser ensinado? O que ainda falta consolidar socialmente para que as religiões cumpram o papel de inclusão e acolhimento?

Eu acredito fortemente que, na catequese, na formação de leigos e nos outros trabalhos pastorais, a gente vai fazendo um caminho de abrir os olhos dos cristãos para o outro. Isso como consequência do amor a Jesus. Se eu o amo e se eu o sigo, eu tento viver na minha vida aquilo que ele fez.

Ele anunciou o reino de Deus, o que quer dizer bondade, justiça, saúde, paz, solidariedade e fraternidade. 

Eu acredito que é  possível educar para a empatia por meio de testemunhos. O cristão é esse que vai na defesa das pessoas e da vida, porque é um mandado de Jesus.

As pastorais sociais são a realização disso, da ideia de que o seguidor de Jesus precisa acolher e  acudir o pessoal que está na rua, que está com fome ou sem ter o que vestir. Há também a questão do meio ambiente, dos que estão encarcerados. 

O que a Igreja faz é criar esses serviços, que levam o nome de pastoral, para cuidar desses aspectos da vida atual que são contrários àquilo que Jesus pediu. Às vezes, são processos lentos, mas não deixam de ser feitos.  

Acompanhar essas pessoas e ajudar no resgate da sua dignidade, na consciência de que são gente, de que elas têm direitos, é profundamente cristão. Porém, inúmeros trabalhos que são feitos não aparecem, não viram notícia. 

Mas, de fato, todos têm essa tarefa de conscientizar, para que a gente perceba que o rosto do Cristo é o rosto do outro.

 

Edição: Ana Carolina Vasconcelos